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Uma sociedade de imagens



Existem diversas formas de se interpretar a realidade. Seja por campo de saberes distintos, ou entrecruzados, seja por teóricos de linhas distintas, a forma de o olhar para o social é sempre múltipla e complexa. Porém, um elemento que pode ser considerado quase como um consenso é a importância das imagens na nossa atualidade. Isso é visto principalmente pelo uso cada dia maior de redes sociais digitais, que funcionam como meios digitais onde cada um irá compartilhar seu conteúdo, de acordo com as características de cada um dos sistemas sobre quais estas redes se estabelecem. Mas, ao olhar rapidamente pelas principais redes sociais, vemos como as imagens possuem predominância nos conteúdos divulgados, sejam por fotos ou vídeos, e nisso incluímos as redes que originalmente possuam sua base em textos, como Twitter e Facebook, e hoje incorporam estas mídias imagéticas em seu conteúdo de divulgação.


Quem vai pensar esta relação das imagens como meio de interação social é Guy Debord em seu livro "A Sociedade do Espetáculo", onde passamos do ter para o ser, e na atualidade para o parecer. Fazer ser visto é o papel de cada um dentro destas redes. Apontando como ao superar o paradigma da sobrevivência nossa sociedade se torna dependente da economia que a libera deste paradigma, e entendendo como, a partir dai, a mercadoria se torna o meio em que as relações sociais se estabelecem, ele observa que pelo acúmulo dessas mercadorias elas ganham uma nova característica: o espetáculo. Este seria, por exemplo, o valor de imagem que é adicionado a uma mercadoria, como o valor de uma marca de roupa ou o modelo de um celular, que está para além do valor de uso. De qualquer forma, o que vemos na análise de Debord é o quanto esta mercadoria acumulada se torna o espetáculo, que tem por característica ser imagético por fazer ver. Assim, o que vemos nas redes sociais digitais é uma especialização na transmissão desse espetáculo.


Em cada rede social vemos como nossa interação se torna espetacular: estamos a todo momentos nos esforçando para "fazer ver" a nós mesmos, seja em nossas atividades cotidianas, seja mostrando nossas conquistas ou desabafos. O que Debord também aponta é que uma das características do espetáculo é a separação, a divisão. Sendo uma falsificação da vida, pois ele substitui a experiência pela imagem, como numa propaganda em que cada mercadoria substitui a própria experiência, o próprio espetáculo esconde essa miséria da experiência que ele provoca. Com isso, ele separa a todos, mas como iguais. Nos juntamos no espetáculo, mas como separados. Estamos todos na mesma rede, todos falando, mas ninguém escutando. Isso porque acreditamos que, ao compartilhar uma foto, um vídeo, uma opinião, um comentário, o que quer que seja, estamos nos relacionando, quando no fundo, nossa relação se dá com o espetáculo. O espetáculo tem por único objetivo retornar a si mesmo.


Outro pensador que vai dar uma visão interessante a esta utilização de redes sociais numa dinâmica de "fazer ver" é Byung-Chul Han, em seu livro "Psicopolítica". Se utilizando do pensamento de Michel Foucault sobre as sociedades disciplinares, classificadas como biopolíticas, pois definiam o controle dos corpos, definindo como se deve viver, numa mudança social que sai da dinâmica de acumulação para uma sociedade financeirizada, há também uma mudança nas dinâmicas de controle. Se em Foucault vemos o papel do Panóptico das prisões com a função de "fazer agir", como o Big Brother da obra de George Orwell que tudo vê, e por isso nos faz agir de acordo com sua lei, o que temos na transformação social é uma pulverização dessa figura panóptica. Se antes ela podia ser representada pelo professor, do médico, chefe e o padreque exerciam a função de "fazer falar", na sociedade atual, que Deleuze definiu como de controle (veja o texto anterior sobre), todos nós e cada um nos tornamos o professor e o aluno, o médico e o paciente, o chefe e o empregado, o padre e o fiel. Foucault já apontava como o poder se caracterizava pelo fazer confessar. Ou seja, ao ir num médico, a função deste era que cada um confesse tudo o que sente sobre si, para que, em cima desta confissão exercer sua forma de poder. Na atualidade, ao fragmentar esta figura de autoridade, tudo e todos somos fazemos confessar ao mesmo tempo que confessamos. É fácil perceber isso. Basta olhar como que, através de uma foto ou um comentário, somos olhados por todos, como no panóptico, ao mesmo tempo que olhamos a todos. Nisso, Han chamou de "panóptico digital".


Se as dinâmicas das relações de poder se alteram, onde pra Deleuze temos a sociedade de controle, para Debord a sociedade do espetáculo, para Baumann a sociedade líquida, para Han a sociedade do cansaço ou do desempenho, todas elas mudam na relação que temos com a imagem. Para a psicanálise Lacaniana, a imagem está associada a uma dimensão definida como Imaginário. O que não quer dizer que o imaginário se resume à imagem. Da mesma forma que outro registro psíquico apontado por Jacques Lacan, o Simbólico, não se resuma às palavras. A questão é que Lacan observa a presenta de três registros que se relacionam, sendo eles o Real, o Simbólico e o Imaginário. De maneira bem simples, o Real é aquilo que falta ao sentido, diz respeito tanto a palavra que falta, ou o limite da palavra ao tentar falar sobre algo, como por exemplo quando tentamos descrever fenômenos como a morte, ou quando tentamos descrever a nós mesmos; tanto como o que está para além do imaginário, além dos limites que o próprio imaginário produz, como a continuação de uma imagem numa pintura delimitada pelas bordas do quadro. Assim, o imaginário seria um elemento que produziria um sentido fechado, ou sentido uno, como nos aponta Coutinho Jorge. Por isso ele está tão ligado à imagem, como vemos na formação do Eu pelo narcisismo, quanto a fantasia. Já o simbólico possui característica de abertura, como no sentido múltiplo que uma palavra possui, seja pela sua grafia, pela sua sonoridade, etc. O que Lacan observa é que fazemos frente a este Real do não sentido através das amarrações que o simbólico faz com o imaginário.


Não é meu intuito aqui avançar na teoria dos registros psíquicos de Lacan. Mas esta introdução foi importante para pensar que, se temos uma sociedade em que a imagem se torna o centro das nossa socialização, como no espetáculo que media as relações sociais, como se dá esta tarefa de fazer frente ao Real, já que o simbólico acaba sendo deixado de lado? Sobre este simbólico ser "deixado de lado", é possível perceber em certas práticas ligadas a ele, como prática de leitura, compreensão de texto, momentos de reflexão, relação com um tempo prolongado etc. que são, assim como Walter Benjamin fala sobre a experiência, estão em baixa. O que quero apontar aqui é que se nos tornamos uma sociedade em que a dimensão do imaginário ocupa o centro da nossa socialização, isso se deve por algumas características deste imaginário. Talvez a principal delas esteja no sentido uno, no sentido fechado. Isso porque este sentido uno produz um efeito apaziguador, pois a dúvida, o múltiplo sentido do simbólico produz aberturas, das quais o próprio pensamento se estabelece. É interessante a proposta de Foucault que entender o pensamento não como uma capacidade de abstração, mas sim de problematização. Para ele, pensar é problematizar. E problematizar significa provocar aberturas, fissuras no fechamento do sentido uno. Assim, o imaginário produz um apaziguamento em dois sentidos: primeiro ao produzir um fechamento a dúvida, pois ao dar o sentido o sujeito se distancia de qualquer sinal do real; segundo porque este imaginário, por ter um sentido uno, produz uma antecipação, tirando do horizonte a angústia diante da dúvida.


Sinais sobre esta dimensão são visíveis na atualidade. Um deles está em práticas identitárias. Normalmente, quando se usa esta palavra "identitário" pensamos apenas em sua dimensão ligada a movimentos sociais, ou seja, numa dimensão política. Assim, as políticas identitárias ganham bastante espaço na nossa forma de socialização. Se ultrapassarmos a disputa política em torno destas pautas identitárias, poderemos compreender que elas surgem exatamente por este aspecto de nossa socialização focada nas imagens. As identidades estão ligadas não só a estes movimentos, mas a outras formas de relação social, da qual aquela que praticamos nas redes sociais ganham mais destaque. Se alguns pensadores apontam para a nossa sociedade como narcísica, se deve exatamente a essa prevalência do imaginário sobre o simbólico.


Se isso ocorre, deve-se a própria dinâmica de poder. E aqui, novamente, Foucault nos será útil. Isso porque em sua tese sobre o saber/poder, ele aponta que não existe saber sem poder, e nem poder sem saber. Assim, o saber reflete exatamente as dinâmicas de poder daquele momento histórico. O saber, que aqui podemos pensar na tecnologia desenvolvida pelos sistemas e aplicativos de redes sociais digitais, direcionam cada usuário a uma dimensão mais imaginária do que simbólica. O próprio desenvolvimento de transmissão de dados é necessário para que uma rede destas características se viabilizem. Isso porque, enquanto o texto possui uma exigência muito menos de transmissão de dados, fotos e vídeos exigem cada vez mais, principalmente com o aumento da qualidade destes. A própria guerra dos "G" (4G, 5G etc.) diz respeito a como o acesso a essa rede digital virtual estará disponível a todos em qualquer lugar e a todo instante.


O imaginário possui um papel fundamental aqui dentro do capitalismo. Por ter como dinâmica o sentido uno, ou seja, ele dá a resposta de forma imediata, seu tempo de compreensão é menor do que aquele que seria no simbólico que produz abertura para o duplo sentido. Se Lacan nos fala de instante de ver, tempo para compreender e momento para responder, tríade que remonta a Bergson, a diferença entre simbólico e imaginário está neste tempo para compreender. Assim, o imaginário auxilia numa aceleração do tempo. Mas qual o interesse do capitalismo nesta aceleração? Como já vimos desde Karl Marx, seu motor é sua própria contradição: a necessidade de crescimento infinito. Precisamos sempre consumir mais e produzir mais. Se hoje fizemos 10, amanhã será necessário fazer 11, ou 12, e assim por diante. A aceleração se torna fundamental como resposta a esta contradição. Não atoa, o que vemos se estabelecer é uma sociedade do espetáculo, do fazer ver. Um fazer ver que substitui a experiência. Isso porque esta, como vemos em Benjamin, exige um tempo mais prolongado, um tempo que não se resuma naquele mesmo instante.


O problema desta organização em torno de imagens é que, sem o simbólico, estas amarrações do imaginário se tornam precárias. Mas para o capital isso se torna uma vantagem. Pois ao se utilizar do Imaginário para fazer frente a este Real, utilização fadada ao fracasso desde sempre, para cada falha o que o mercado oferece é uma nova mercadoria que, esta sim, será a solução para o problema. Como Debord nos mostra, o que se consome é apenas o espetáculo, e este como uma falsidade só se mostra falso quando o produto chega a casa de cada um, denunciando a mentira publicitária que ele representa, mas direcionando para a próxima mentira. Assim, quanto mais falhamos em fazer frente ao mal estar produzido pela nossa sociedade com as imagens, mais imagens consumimos para fazer frente a este mal estar. Estas imagens recebem formas diversas: são postagens em redes sociais, produtos que compramos na internet, refeições que fazemos em restaurantes, viagens muito bem fotografadas, show e espetáculos do qual precisamos "postar" sobre, nomeação de adoecimentos que esvaziam o sofrimento, principalmente em termos de transtornos mentais, colecionismo, e o consumo de drogas lícitas e ilícitas. Todas são formas de consumo de imagem, pois elas produzem um fechamento ao sentido, negando qualquer possibilidade de abertura.


O resultado é o mal estar crescente em cada um que vive na atualidade. Se falamos que o capitalismo adoece, se deve exatamente em como ele busca sempre uma solução para sua contradição que, de fato, não possui solução, ao preço de todos e cada um. Se nossa sociedade se torna extremamente imagética, é por que, de alguma forma, esta solução se mostrou ideal para o interesse do capital. E seguiremos assim, até que possamos fazer frente a esta dinâmica e reestabeleçamos nossa relação com o tempo necessário para que a própria experiência encontre lugar. Não se trata de acabar com as redes sociais, ou o consumo, mas em apontar que eles, na atualidade, só funcionam por meio de práticas adoecedora. Mas caso outra forma de lidar com as redes sociais não se estabeleça, ou o consumo, então a solução é sua morte. E como aprendemos em psicanálise, a morte é o ponto inicial para a produção de algo novo. Sem a destruição não se faz possível a criação do novo.

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Psicólogo Clínico Psicanalista

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©2023 por Thiago Miranda.

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